A armadilha do perfeccionismo

Por Joyce Barsotti Cunha 

- junho de 2023 - 

Você com certeza já ouviu falar sobre essa situação. Ou pode até ser que tenha vivido isso na pele...

Entrevista de emprego, e lá vem o entrevistador com todas aquelas perguntas clichê - que nem dá pra entender porque continuam sendo feitas :/


- Fale sobre um defeito seu.


E então, a pessoa responde:


- Sou perfeccionista.


Já deveria ser de domínio público essa lição: nunca se deve, em resposta a essa pergunta, dizer algo relacionado a perfeccionismo, já que isso não é um defeito, e insinuar que você é perfeito não o tornará atraente para o entrevistador. Mesmo assim, infelizmente essa ainda é uma cena muito comum.


O perfeccionismo tem versões desadaptativas e pode beirar a patologia. É esse lado mais sombrio do perfeccionismo que me interessa aqui. 


Mas vamos começar com a variante adaptativa.


Em suas manifestações saudáveis, o perfeccionismo motiva as pessoas a buscarem a excelência. Essa motivação é a chave para os maiores empreendimentos humanos. É difícil imaginar alguém se tornando um mestre do violino, um bailarino de renome mundial ou um artista notável sem uma medida de intolerância à mediocridade, que está no centro da busca pela excelência.


Outras vezes, porém, o perfeccionismo assume uma forma diferente – e autodestrutiva. O perfeccionismo doentio nos leva a gastar mais tempo pensando do que realmente tentando fazer qualquer coisa. E por quê?


Existem duas bases principais para o perfeccionismo doentio. Uma delas é a tendência de mudar o foco da atenção da tarefa em questão para como o sucesso ou o fracasso refletiriam sobre nós. É claro que, ao fazer qualquer coisa, todos nós estamos mais ou menos conscientes do fato de que tanto o sucesso quanto o fracasso mostrariam algo sobre nós – e não somos indiferentes ao que seria esse algo. Quando estamos focados em uma tarefa, porém, esse pensamento está na periferia da nossa atenção, não em seu ponto focal. 


Mas não é assim para o perfeccionista. O perfeccionista está sempre preocupado com o que o sucesso ou o fracasso mostrariam sobre ele.


E por que isso é um problema? Porque a gente só consegue fazer um bom trabalho se prestar atenção no que está fazendo. Se estamos pensando em outra coisa – qualquer coisa – nossa mente não está onde deveria, e nosso foco não está na tarefa que deveria estar sendo realizada.


Existe também outro caminho para o perfeccionismo desadaptativo. O perfeccionista está fixado na ideia de que o projeto que ele tem em mãos deve ser a melhor coisa que ele já fez. Cada mínimo detalhe precisa ser pensado, estudado, analisado, avaliado e revisto algumas (muitas) vezes antes de ser colocado no mundo. Ao seguir esse raciocínio, o perfeccionista fica focado no vôo da sua flecha de Zenão, e paralizado por seu próprio paradoxo.


A expressão “o voo da flecha de Zenão” é uma referência ao filósofo grego Zenão, que defendia que uma flecha nunca pode chegar ao seu destino, porque primeiro ela deve percorrer metade da distância até o ponto final e, antes disso, metade da primeira metade, e assim por diante ad infinitum.


"Você não pode, raciocinou Zenão, chegar ao seu destino se tiver que passar por um número infinito de estágios."


O paradoxo de Zenão

No paradoxo das flechas, Zenão argumenta que, em qualquer ponto durante o voo de uma flecha, ela está em repouso. Isso ocorre porque, em um instante infinitesimal de tempo, a flecha ocupa apenas um ponto específico no espaço. Portanto, em cada ponto sucessivo de sua trajetória, a flecha está momentaneamente em repouso.

Ele sugere que, se em cada ponto a flecha está em repouso, o movimento da flecha se torna uma mera ilusão. Afinal, se em todos os pontos ao longo de sua trajetória a flecha está em repouso, como pode realmente se mover?

Embora o paradoxo de Zenão tenha sido objeto de muita discussão e debate ao longo dos séculos, hoje em dia sabemos que ele não representa uma contradição real no mundo físico. Graças à matemática e à física moderna, podemos explicar o movimento e a mudança de forma consistente. 


No entanto, a imagem do paradoxo de Zenão captura muito bem a estrutura mental do perfeccionista. É como se o perfeccionista estivesse a todo tempo tentando alcançar o horizonte, que sempre parece estar ao seu alcance, mas nunca está.


O que torna o sucesso ainda menos provável é a visão romantizada do perfeccionista, a esperança da facilidade. É como se ele esperasse que as tarefas simplesmente se completassem, como em um passe de mágica. Sem esforço. Num futuro muito próximo. 


A situação do perfeccionista é agravada ainda mais pelo fato de que qualquer coisa que não seja a maior realização de alguém é vista como um fracasso do empreendimento. Isso quase garante uma falha na própria estimativa do perfeccionista. 


De onde vem o perfeccionismo?


Um fator comum para a maioria dos perfeccionistas é o medo do erro, que pode estar associado a muitas causas, desde razões que poderiam ser entendidas como razoáveis ​​ou possíveis (“se ​​eu não revisar a prova corretamente, posso reprovar”), até outras que não são razoáveis ​​ou que não fazem sentido (“tenho que escolher muito bem aonde ir neste fim de semana ou meu parceiro vai me deixar por não propor planos interessantes", "se eu não responder aos e-mails no mesmo dia, as pessoas vão ficar com raiva de mim"...).


Esse medo pode ter se desenvolvido na infância, por ter sofrido consequências negativas extremas ao se confundir ou cometer erros, e pode ter se mantido ao longo do tempo pelos estilos cognitivos que foram desenvolvidos (formas de pensar e interpretar a realidade).

Muito se fala sobre o propulsor psíquico do perfeccionismo, sua fonte de poder mais profunda. A questão mais importante, no entanto, não é como o perfeccionismo desadaptativo começa, mas como ele pode ser evitado e talvez transformado em algo mais saudável: o impulso para a excelência


Mas também é importante se precaver contra a sedução oculta da mentalidade autodestrutiva do perfeccionista. Pois essa mentalidade tem um apelo terrível: há algo reconfortante nesse tipo particular de mal-estar. Pode-se quase refugiar-se nela, dizendo a si mesmo que não adianta tentar mudar nada, porque a própria natureza da doença da psique é uma incapacidade de fazer as coisas de maneira diferente. Psiquicamente, o perfeccionismo é um lar.


É precisamente essa tendência de se acomodar com o próprio perfeccionismo que deve ser combatida.


O perfeccionismo doentio começa com uma promessa inebriante de um grande sucesso em um futuro muito próximo. Mas só podemos manter uma crença desse tipo por certo tempo antes de ficar claro que a promessa era falsa. Então, a embriaguez aos poucos se transforma em algo diferente: a aceitação da própria identidade de perfeccionista e, a partir daí, da certeza do fracasso. Você diz a si mesmo que, a menos que vá criar uma verdadeira revolução, não há sentido em começar nada. 


Como começar um revolução é algo improvável, o perfeccionista conclui que não precisa agir. Afinal de contas, se qualquer coisa que ele possa alcançar com certeza será um fracasso para seus padrões atuais, por que se preocupar?


Nesse estágio, o perfeccionismo nos leva à inatividade. Doença como desculpa. Isso nos mata, lenta e suavemente.

O perfeccionismo doentio não é simplesmente um desejo de perfeição, mas um desejo de sucesso sem falhas intermediárias, sem falsos começos. É um anseio por um caminho para a grandeza que equivale a uma progressão constante, em que a próxima conquista supera todas as anteriores. E isso simplesmente não é uma opção para os meros mortais que somos.



E como sair dessa armadilha?

À medida que exploramos as muitas versões do perfeccionismo, é essencial lembrar que somos seres humanos em constante evolução. O caminho para a autorrealização e o bem-estar não é pavimentado por uma busca implacável pela perfeição, mas sim pela busca por progresso e autenticidade.

A perfeição é uma miragem inalcançável que nos consome e nos impede de apreciar a beleza das imperfeições que nos tornam únicos. Ao reconhecer e aceitar nossas falhas, limitações e vulnerabilidades, abrimos espaço para o crescimento, a aprendizagem e a resiliência.

Ao invés de nos deixarmos aprisionar pelas exigências e expectativas irreais, podemos abraçar a jornada do autodesenvolvimento com gentileza e compaixão. Celebrar o progresso, mesmo que seja um passo de cada vez, nos permite reconhecer nossas conquistas e desfrutar do processo.

É importante lembrar que o verdadeiro valor de nossas realizações não reside na perfeição superficial, mas sim na autenticidade e na contribuição genuína que oferecemos ao mundo. Cada pequeno avanço, cada superação de desafio, nos aproxima mais de uma vida plena e significativa.


Claro que é mais fácil falar do que fazer, mas o primeiro passo é tomar consciência de que somos humanos. Falhos. imperfeitos.

Libertar-se das amarras do perfeccionismo significa abraçar a jornada rumo à sua melhor versão, valorizando cada tropeço, aprendendo e crescendo ao longo do caminho. Seja gentil consigo mesmo e celebre sua singularidade.

Lembre-se de que você é mais do que o resultado de suas realizações. Você é um ser humano completo, digno de amor e aceitação, exatamente por ser como é. 

Permita que cada passo em direção a libertar-se da busca pela perfeição seja uma afirmação poderosa do seu valor intrínseco. Você tem o poder de se libertar das armadilhas do perfeccionismo e criar uma vida repleta de autenticidade, crescimento e alegria.

Vá em frente, abrace sua jornada com confiança e lembre-se de que é a sua humanidade que o torna extraordinário. Você está pronto para florescer e brilhar de maneiras que vão além de qualquer noção limitante de perfeição. Você é único, e isso é absolutamente maravilhoso.


Joyce Barsotti Cunha

Psicóloga, Pedagoga e apaixonada pelo mundo da Educação. Fundadora da myJoy Academy.